Quando dois se tornam três
O nascimento de um bebé desejado constitui habitualmente um momento de grande felicidade mas pode igualmente trazer uma tensão considerável à relação de casal.
Um filho, personificação do amor do casal, metáfora do potencial criativo inerente a essa ligação amorosa, traz consigo grandes modificações e exigências para a relação conjugal podendo, paradoxalmente, contribuir para colocá-la em risco.
É necessária, mas nem sempre fácil, uma integração dos novos papéis e responsabilidades. Toda a vida familiar tende agora a gravitar em torno do bebé e, enquanto se criam novos equilíbrios e rotinas, procura-se lidar com a falta de tempo para cada parceiro e com a falta de espaço e intimidade para o casal.
De facto, a chegada de um filho, sobretudo o primeiro, causa uma profunda mudança tanto ao nível da realidade externa, como da vida psíquica de cada parceiro e do próprio casal. Há uma alteração na forma como os elementos do casal se relacionam, mas também na identidade de cada um.
Com o bebé nasce um pai e uma mãe (tal como um avô e uma avó) assistindo-se a uma reorganização das fronteiras geracionais e, de certo modo, ao nascimento de uma nova família. Há uma redefinição de papéis que se tornam agora mais complexos: “sou homem, marido e pai…” ou “sou mulher, companheira e mãe…”. É um admirável mundo novo, que tem tanto de fascinante como de assustador, e que exige profundas adaptações individuais e na relação conjugal.
Ao nível individual, cada elemento do casal vai reviver a sua infância, de forma mais ou menos consciente – o filho que foi, os pais que teve, o casal parental que o criou – e tem pela frente uma oportunidade de reparação da sua própria história, escolhendo o pai ou mãe e também o casal que será, no processo de ajudar os seus filhos a crescer. Poderá decidir (embora se trate de uma decisão que não é inteiramente livre, pois é muito condicionada por aspectos inconscientes) fazer igual ou diferente daquilo que viveu na sua família de origem, mas será sempre profundamente afectado e modificado do ponto de vista psíquico, pela chegada de um filho.
Pensemos agora no casal. Ao tornarem-se pais, ambos os parceiros estão envolvidos no “mesmo” evento de vida – o nascimento do seu filho – mas podem fazer a transição para esta nova etapa e para a parentalidade em momentos e de maneiras diferentes. Significa isso que esta reorganização individual, pelas diferenças que acarreta, é potencialmente causadora de tensões no casal.
A vivência da diferença (e do desencontro) no seio do casal, após o nascimento do bebé, é amplificada pelo facto de durante a gravidez os seus membros terem muitas vezes experienciado um sentimento de semelhança, proximidade e partilha. De facto, no período da gravidez, a ideia de se tornarem pai e mãe daquele bebé, pode funcionar como um vínculo unificador entre os parceiros, promovendo uma fantasia de fusão na relação de casal. Ora essa fantasia cria expectativas que são posteriormente frustradas.
Assim, depois da euforia ligada ao nascimento do bebé, segue-se frequentemente um sentimento de desorientação e de maior distância no casal originado pela vivência das diferenças, inevitáveis se pensarmos que um casal é composto por duas pessoas distintas.

Os desencontros no casal têm muitas vezes origem nas diferenças entre o feminino e o masculino. Depois do nascimento as mulheres tendem a sentir-se mães de forma mais imediata, ao passo que nos homens esta transição é geralmente mais gradual. A relação mãe-bebé toma a primazia deixando o pai e a relação de casal em segundo plano. Isso pode gerar sentimentos de exclusão no pai que sente não ter um lugar (não consegue igualar a capacidade do bebé para absorver a atenção e o afecto da mãe, nem consegue ligar-se e cuidar no bebé como a mãe é capaz), assim como sentimentos de desamparo na mãe que se sente vulnerável neste novo papel, e menos apoiada e compreendida pelo seu parceiro. Muitas vezes os elementos do casal encontram diferentes soluções para o mesmo problema: obter a gratificação emocional de que necessitam (e que não estão a conseguir obter um no outro). A mãe (re)investe no bebé, aprofundando esta ligação que lhe traz um prazer muito profundo (relacionado com a sua própria relação materna) e o pai investe na vida profissional (tanto mais que subsistem papéis de género que atribuem ao homem o papel de principal provedor económico da família, sobretudo numa altura em que a mulher está mais afastada da esfera profissional). Contudo, estes movimentos são acompanhados por uma insatisfação crescente na relação de casal e por um grande sofrimento psicológico dos dois parceiros. Por vezes, estes são os momentos em que surgem relações extraconjugais, que sinalizam (e acentuam) a crise no casal, pondo em causa a sua continuidade.
As dificuldades neste processo de ajustamento no casal ganham maior dimensão quando existem outro tipo de questões no psiquismo dos pais que, até aí, por se tratar de uma relação a dois, não tinham assumido tanta relevância: por exemplo, a vivência de sentimentos de abandono ou desamparo na sua própria infância (que são reactivados pelo nascimento do bebé) amplificando a sua necessidade em serem cuidados pelo parceiro. Isso dificulta a adaptação a este novo triângulo (pai-mãe-bebe) onde mais facilmente um ou os dois parceiros se sentirão excluídos ou abandonados na relação com o outro. Uma outra questão subjacente, neste caso, é a menor disponibilidade psicológica para cuidar de um filho, já que as necessidades e exigências da criança são sentidas como um ataque aos recursos limitados dos pais (a questão do exercício da parentalidade no casal será um tema para outro artigo).
A transição de dois para três é um enorme desafio para o casal. Alteram-se equilíbrios previamente existentes e introduz-se inevitavelmente uma distância e diferenciação no casal, processo essencial para encontrar espaço para um bebé mas gerador de problemas e tensões na conjugalidade.
Se a chegada de um filho coloca a relação conjugal em segundo plano, pelo menos temporariamente, é preciso aprender a viver a três preservando também o espaço a dois.
Para alguns casais esta transição é relativamente natural apesar dos desafios que envolve, mas para outros reveste-se de grande ameaça para a homeostasia do casal.
Nestes casos, uma psicoterapia de casal é um espaço de grande relevância para ajudar os elementos do casal a pensar e a elaborar a representação que têm de si, do parceiro e da relação, a compreender e lidar com as mudanças e perdas como indivíduos e como casal que advêm do nascimento de um filho, e a construir novos equilíbrios na sua conjugalidade e parentalidade. No fundo, a tornarem-se pais continuando a ser um casal, para que a sua relação saia fortalecida desta profunda mudança nas suas vidas.
Marta Aleixo
Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta