O trabalho e a saúde mental
O trabalho é uma dimensão central na vida das pessoas. Não somente por motivos de sobrevivência económica mas porque confere identidade, pertença social, reconhecimento e prazer. Por outro lado, o trabalho pode gerar tensão, insatisfação e sofrimento psicológico. O trabalho não é, pois, uma atividade neutra para a saúde mental.
Como é que o trabalho promove a saúde ou provoca doença? Será esse processo de adoecer ou de tornar-se mais saudável, algo que tem origem nos indivíduos e nas suas características pessoais, nas suas “forças” e “fragilidades”? Ou será frequentemente também fruto de modos de funcionamento presentes nas organizações que destroem as suas defesas psíquicas, tornando-os vulneráveis à crise psicológica e à doença mental?
Refletir sobre este assunto implica pensar como surge a doença mas também a saúde mental. Sendo que nem a saúde nem a doença são um estado permanente e imutável, mas sim algo que se constrói a partir de um caminho pessoal, subjetivo e único, que se joga na relação de cada pessoa com as várias dimensões da sua vida, entre as quais o trabalho.
A psicopatologia e a saúde mental associadas ao trabalho é um tema estudado por Christophe Dejours, psicanalista de origem francesa que apresenta uma reflexão profunda e original sobre este assunto. A obra de Dejours vem ampliar as abordagens que inicialmente se debruçavam sobre o estudo das doenças mentais relacionadas com o trabalho (a psicopatologia do trabalho), passando a abranger igualmente uma compreensão das estratégias e recursos mentais, individuais ou coletivos, utilizados pelas pessoas para resistir ao sofrimento psíquico em contexto laboral e para construir a sua saúde mental através do trabalho (a psicodinâmica do trabalho). Nesta perspetiva a ênfase é colocada na manutenção da saúde e no desenvolvimento e realização pessoal, apesar das adversidades vividas no quotidiano do trabalho.
Dejours coloca a seguinte questão: Como podemos pensar o sofrimento psíquico evidenciado por uma pessoa que afirma que a sua situação no trabalho se tornou intolerável? Neste cenário, bastante frequente no contexto clínico, é possível supor que o trabalho constitui simplesmente o pano de fundo, o território de expressão de um sofrimento psicológico que tem origem noutras áreas da vida. Contudo, pode ser o próprio trabalho a principal causa da dor e do adoecer físico e mental!
Cabe ao clínico tentar compreender em maior profundidade a experiência psíquica subjetiva daquela pessoa, sabendo que a dicotomia entre dentro e fora do trabalho, entre vida profissional e vida privada, é artificial e irrelevante do ponto de vista do funcionamento mental. De facto, sabemos que os problemas que surgem na esfera privada têm frequentemente efeitos prejudiciais na capacidade de trabalhar, mas sabemos igualmente que as exigências do trabalho afetam inevitavelmente a vida pessoal e familiar. Como explica Dejours (2015) “Sempre que somos obrigados a mobilizar defesas para suportar a dor causada pelas pressões do trabalho, essas defesas envolvem toda a personalidade. Como tal, elas têm um grande impacto sobre comportamentos e atitudes na esfera privada, incluindo a economia corporal e os relacionamentos afetivos.”

Portanto, a relação subjetiva de cada pessoa com o seu trabalho, mais salutar ou patogénica, afeta-a no seu todo (corpo e psique) e em todas as áreas da sua vida.
Existem aspetos individuais que se jogam nessa relação entre cada pessoa e o seu ambiente laboral. As mesmas adversidades associadas ao trabalho não são sentidas de forma igual por todas as pessoas em circunstâncias idênticas. Cada uma delas, em função da sua personalidade e história de vida singular, encontra uma forma particular de reagir ao mesmo contexto. Porém, existem igualmente aspetos das organizações que favorecem o sofrimento e o adoecer psicológico (ou, inversamente, o prazer e a saúde mental!).
Assim sendo, como é que alguns trabalhadores conseguem manter um certo grau de equilíbrio psíquico apesar das pressões e dificuldades a que estão sujeitos no trabalho?
E de que forma é que o trabalho tem um papel tão determinante na vida psíquica e afetiva do trabalhador e, por conseguinte, na sua saúde física e mental?
Trabalhar não é apenas produzir algo – implica uma transformação e construção identitária.
Fazer um bom trabalho requer um investimento intenso: o trabalhador tem que utilizar a sua inteligência, criatividade e subjetividade para ultrapassar obstáculos, para resolver os problemas e imprevistos que surgem a cada momento. Além disso o trabalho envolve uma experiência afetiva: pode causar satisfação, orgulho, surpresa, irritação, desilusão, sentimentos de injustiça e de impotência. Em particular, a gratificação proveniente de se ter alcançado ou suplantado os objetivos na realização do trabalho traduz-se numa experiência de valorização e crescimento pessoais. Nesta medida trabalhar mobiliza e transforma o Eu.
O trabalho implica também a relação e a cooperação. Essa esfera relacional do trabalho está ligada ao sentimento de pertença e de reconhecimento vindo do outro (superiores, subordinados, clientes, pacientes, colegas) tendo um impacto considerável na identidade e na saúde mental da pessoa. É graças a esse reconhecimento que uma parte considerável do sofrimento inerente ao trabalho é transformada (sublimada) em prazer no trabalho.
Deste modo, encontrar valor, significado e beleza no trabalho que se faz (dimensão estética), assim como reconhecimento, respeito e apoio por parte dos outros com quem se partilha e constrói essa obra (dimensão relacional), alimenta um sentimento de realização e de expansão identitária promotor de bem-estar e saúde.
Inversamente, quando o mundo do trabalho é essencialmente marcado pela competição e pelo culto do desempenho, quando é difícil estabelecer relações de confiança, quando grassa indiferença e a falta de solidariedade face ao outro, então, é a solidão e o desamparo que predominam, com um efeito devastador na saúde mental. Neste caso as características e exigências das organizações sobrecarregam ou anulam os mecanismos de defesa e de adaptação do indivíduo. E sem capacidade de transformar o sofrimento, a pessoa adoece.
Marta Aleixo
Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta
www.martaaleixo.com
Referência: Dejours, C. (2015) Psychopathology of Work: Clinical Observations. London: Karnac Books.