As famílias em tempos de inquietação
Vivemos momentos de estranheza, de imprevisibilidade, de inquietação…
O perigo latente que nos rodeia e que muitas vezes traz consigo uma aguda sensação de irrealidade, provoca medo, confusão, angústia… Como pôde a nossa vida mudar de forma tão súbita?
Enfrentamos algo desconhecido, estranho, que se impõe e transforma o que tínhamos como certo. Que ameaça a nossa integridade física mas também a nossa integridade psicológica.
E as famílias?
Como se podem as famílias reinventar e enfrentar estes novos tempos?
Por um lado vivem separações impostas, onde o receio da doença retira espaço para a proximidade e para os afectos. Os idosos estão (ainda) mais isolados, sem poderem apoiar e ser apoiados pelos filhos, pelos netos, por receio do contágio. Nas famílias reconstituídas, os pais divorciados angustiam-se com a dificuldade em estar com os filhos. Para muitos, já com uma fraca rede familiar, a solidão acentua-se. Já não se pode estar os amigos, com os colegas, com os vizinhos. É certo que o mundo digital ajuda, abre caminhos novos e cheio de possibilidades, novas formas de viver a relação. No entanto falta o contacto físico, a presença do outro…
Por outro lado, o confinamento social isola a família do exterior mas obriga também a uma convivência mais intensa e permanente entre os seus elementos. Os antigos equilíbrios no seio da família alteram-se, os conflitos e violências podem surgir ou acentuar-se. A alteração de rotinas, tão importantes enquanto organizadores mentais e familiares, introduz uma desordem e uma descontinuidade difíceis de tolerar. A impossibilidade de evasão e a presença permanente do outro pode fazer emergir sensações de intrusão e de esbatimento dos limites do eu.
Para muitas famílias estes são tempos de grande ansiedade e sofrimento pelo que já experienciam e pelo que receiam encontrar: o desemprego, a recessão, a solidão, o desamparo, a doença, a morte.
O sofrimento dos adultos é também o sofrimento das crianças, que captam e vivem as mesmas angústias embora com menor capacidade de as transformar em algo não disruptivo e integrável. Esse é essencialmente o papel dos pais muito embora estes possam nem sempre estar nas melhores condições para o fazer devido ao seu próprio sofrimento psicológico.
Não sabemos se estas mudanças serão transitórias. Não sabemos o que se seguirá. Navegamos sem mapa, por vezes receando o futuro, outras conseguindo viver o presente com alguma satisfação.
Talvez haja aqui também uma oportunidade para parar, pensar, sentir. Para estarmos connosco e com os que nos são próximos quando vamos tendo a felicidade de os ter por perto.
Será que este poderá ser também um tempo de oportunidade para as famílias, tantas vezes atropeladas pelo tempo acelerado das obrigações e tarefas que invadem o dia-a-dia, estarem mais tempo juntas e (re)criarem os seus vínculos?
Para muitas famílias vai sendo possível viver este tempo novo, com criatividade e tolerância pelo que não se sabe. Mas para o fazer são precisos laços, relações de afecto e empatia, que acolhem e ajudam a suportar as ameaças – reais ou imaginadas – e a dor mental. E quem sabe, a transformá-las.
Marta Aleixo
Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta