A comunicação e o conflito no casal
Quando um casal procura uma psicoterapia é bastante habitual observar-se uma situação de conflitualidade entre os parceiros que, se não é revertida, possui um potencial extremamente destrutivo para a relação conjugal.
Para além do pedido de ajuda relacionado com o conflito propriamente dito, é comum o casal salientar a existência de ‘problemas de comunicação’. Esta constatação pode ter inúmeros significados, por exemplo: que há um afastamento emocional que impede a comunicação; que existe uma baixa capacidade de escuta empática (ouvir o outro ao mesmo tempo que nos tentamos colocar no seu lugar) entre parceiros; que a visão de um sobre os acontecimentos vividos pelo casal não é partilhada pelo outro (ou seja, que nem sempre pensam de forma idêntica); ou ainda, entre várias outras hipóteses, que há um desacordo permanente que coloca os membros do casal numa posição de ataque (e defesa) mútuo, procurando ganhar a razão ao invés de se disponibilizarem para compreender a posição do outro.
Na realidade, muitas vezes, o que os elementos do casal fazem não é propriamente comunicar (dizer o que pensam e sentem e ouvir o que o parceiro pensa e sente) mas tentar ter razão e prevalecer, subsistindo em cada um deles a intenção de mudar o outro para assim resolver as dificuldades sentidas na relação.
Noutras ocasiões a mensagem que um quer transmitir não é a mesma que o outro percebe. Aqui, a expectativa, o preconceito e o conflito prévio, contaminam e introduzem ruído na comunicação do casal tornando as interações repetições sempre iguais ao que foi vivido anteriormente (consigo adivinhar o que o outro vai dizer porque já o conheço…). Gera-se um círculo fechado de recriminações, onde não há curiosidade ou possibilidade de mudança.

Além disso, comunicar não é estar sempre de acordo, é também ser capaz de tolerar outra posição, e os conflitos têm frequentemente esta causa: duas posições inconciliáveis numa disputa pelo poder no casal amoroso proveniente do complexo equilíbrio entre o desejo (e do narcisismo) do Eu e do Outro.
Miguel Alejo Spivacow, psicanalista e psicoterapeuta psicanalítico de casal diz-nos que embora o amor corresponda sempre a uma necessidade narcísica ligada à satisfação das necessidades do Eu, no período da “incandescência do enamoramento” o Eu rende-se ao Outro. No entanto, esta rendição é temporária sendo inevitavelmente seguida por movimentos de dominação. Segundo Spivacow esta dinâmica – dominação / rendição – explica que se desenrole uma luta pelo poder entre parceiros onde a prevalência de um, ameaça a existência do outro, e os dois se sentem em perigo de serem apagados pelo outro. Portanto, num vínculo amoroso existem equilíbrios (dinâmicos) que se vão construindo, e que podem implicar movimentos de domínio ou de submissão, de controlo ou de diluição no outro, ou ainda, de tensão, rivalidade e conflito no casal.
Existe outro aspecto que merece nota, ligado às crenças sobre como deve ser um casal. Há quem considere que numa relação amorosa não devem existir discussões ou conflitos. Por isso, quando os elementos do casal se desentendem (porque têm necessidades e desejos diferentes, porque estão sobrecarregados, porque enfrentam dificuldades no seu dia-a-dia ou porque estão a experienciar algum acontecimento de vida negativo ou exigente), sentem que a sua relação está em perigo.
Numa psicoterapia é preciso olhar para o que se passa no vínculo de casal e, por vezes, talvez valha a pena normalizar a existência de alguns desencontros ou divergências. Algum nível de conflito pode fazer parte da vida a dois, desde que não se torne predominante e que o casal tenha a capacidade de o ultrapassar, e desde que não estejamos perante uma situação de abuso ou de violência física e/ou emocional. Contudo, o conflito persistente é um sintoma do sofrimento do casal e constitui ao mesmo tempo uma ameaça ao provocar uma toxicidade crescente e um afastamento cada vez maior, podendo vir a precipitar uma separação.
Geralmente, quando o processo psicoterapêutico tem início, predominam as acusações e atribuições de responsabilidades entre os membros do casal, que sentem que a fonte dos problemas está no parceiro. Associado a isso percebe-se existir uma expectativa que o Outro pense da mesma forma, que valorize as mesmas coisas, que seja capaz de adivinhar os desejos e suprir as necessidades do Eu. Quando não o faz, desilude e pode merecer retaliações.
Muitas vezes a fase inicial da intervenção terapêutica consiste em reduzir a conflitualidade e tornar possível o diálogo. Procura-se transformar um campo de batalha num campo de pensamento. E é precisamente à medida que se constrói um espaço de comunicação e reflexão, que os elementos do casal vão podendo passar de uma posição onde a tónica é colocada no que o parceiro está (ou não está) a fazer, para outra onde procuram compreender aquilo que de modo automático presumem sobre as comunicações e intenções do outro, aquilo que reciprocamente ‘activam’ um no outro, aquilo que produzem em conjunto de forma inconsciente.
Um dos objectivos do trabalho psicoterapêutico é o de clarificar as mensagens e perceber os diferentes sentidos que têm para cada parceiro, desmontando interpretações rígidas e persecutórias do discurso e do comportamento do outro. Sabemos que a comunicação é sempre imperfeita, sujeita a significações e mal-entendidos, e que nesse processo de atribuição de significado ao que o outro expressa, o mundo interno de cada um tem um papel determinante.
À medida que o trabalho clínico progride o casal vai podendo aceitar a difícil realidade de que tudo se reveste de um significado diferente para ambos. Citando Spivacow, trata-se de “uma realidade dolorosa pois vai contra as ilusões fusionais do enamoramento mas que abre caminho a um casal mais apoiado no reconhecimento da singularidade do outro, o que caracteriza o amor e o trabalho psíquico que este implica”.
Referência: Spivacow, M. (2011) La pareja en conflicto: aportes psicoanalíticos. Buenos Aires: Paidós.